JOGOS PARA A ETERNIDADE (7) - Brasil-Itália / 1982

O Mundial Espanha 82 marcou indelevelmente a minha geração.

Foi uma competição extraordinária, disputada aqui mesmo ao lado - ainda que as distâncias nessa altura fossem bem mais difíceis de percorrer – e que juntou figuras como Maradona, Platini, Zico, Rummenigge, Falcão, Sócrates, Paolo Rossi, Keegan, Dino Zoff, Kempes, Boniek e muitos outros, numa época em que o futebol ainda não tinha definitivamente sido conquistado pelo pragmatismo dos resultados.

É verdade que Portugal não esteve presente, mas isso até então era vulgar – apenas em 1966 a selecção nacional conseguira o apuramento. Não foi portanto esse “pormenor” que impediu que o país futebolístico parasse durante um mês, em frente dos televisores (a maioria ainda a preto e branco), a deliciar-se com a quantidade e qualidade das estrelas que lhe entravam pela casa dentro. À falta de Portugal, era o Brasil (que até estagiou no Estoril) que nos alegrava a alma.

Recorde-se que este Mundial contou com a participação de 24 países, o que além de representar uma novidade em termos de formato, significava um número acrescido de jogos – de 38 nos mundiais anteriores, tínhamos agora 52 partidas, todas, ou quase, transmitidas pela televisão.

Vivia-se ainda nos dias da rádio, em que as transmissões televisivas se cingiam normalmente à final da Taça de Inglaterra, à final da Taça dos Campeões, e a um ou outro jogo da selecção nacional no estrangeiro. Imagine-se pois o regalo que era durante um mês poder desfrutar de 52 jogos entre as melhores selecções do mundo, recheadas de algumas das estrelas mais cintilantes da história da modalidade.

Conforme disse, a esmagadora maioria dos portugueses apoiava a selecção brasileira. O nosso país, depois das convulsões revolucionárias, vivia uma fase de reencontro com os seus símbolos nacionais, e o mais importante de todos era a língua. Esse aspecto, paralelamente à possibilidade de êxito que uma selecção brasileira sempre abre em qualquer competição, fazia com que milhares, para não dizer milhões, de portugueses vibrassem com o “Escrete Canarinho”. Até porque essa equipa do Brasil não era uma equipa qualquer.

Se me perguntarem qual foi o melhor jogador do meu tempo, não hesito: Diego Maradona. Se me perguntarem qual o melhor conjunto, talvez responda o Milan de Sacchi ou o Liverpool de Paisley. Se a questão contudo for qual a equipa que mais me encantou, ou aquela cujo perfume mais sedução espalhou, essa foi sem dúvida esta selecção brasileira de 1982, que praticava o futebol mais bonito que alguma vez pude ver.

Era interessante que a RTP Memória pudesse um dia passar esses jogos, pois o requinte técnico, a magia colectiva alicerçada no talento individual de vários foras-de-série, a força ofensiva, a criatividade a tocar os limites da nossa imaginação, fazia desse Brasil uma selecção empolgante como nenhuma outra, e dos seus jogos, espectáculos deslumbrantes da mais pura arte.

Se no início do Mundial os portugueses já estavam com o “Escrete”, ao longo da prova os brasileiros terão cativado o mundo inteiro, e quando disputaram o acesso às meias finais com a Itália, talvez só na “bota mediterrânica” não arregimentassem apoios.

O Brasil começou a prova com a URSS, num jogo muito aguardado, até por motivos políticos – no Brasil a ditadura de Figueiredo ainda estava para durar, e na União Soviética vivia-se ainda a era Brejnev.

Ao frango do guardião Valdir Peres nos primeiros minutos, respondeu o Brasil com uma segunda parte magistral, e dois golos sublimes de Sócrates e Eder (este no último minuto) que garantiram a vitória. Em seguida o Brasil derrotou facilmente a Escócia por 4-1, e a Nova Zelândia por 4-0, com mais duas exibições luxuosas, apurando-se com toda a tranquilidade para a segunda fase da prova.

No grupo A, uma Itália tristonha e ineficaz conseguiu o apuramento por um…golo. Três empates deixaram-na atrás da Polónia, e em igualdade pontual com os surpreendentes Camarões. No goal-average, mais um golo marcado que os africanos levou a Squadra Azurra para a segunda fase. Longe estávamos de saber onde chegaria depois.

O Mundial 82 teve um figurino competitivo único, que não mais se repetiria. Dos seis grupos iniciais eram apuradas doze selecções (até aqui tudo normal), mas depois, ao invés de eliminatórias, havia outra fase de grupos, então com quatro poules de três equipas cada.

Brasil, Itália e Argentina (com a base da equipa campeã em 78 reforçada com…Maradona), fruto dos segundos lugares destes dois últimos, constituíram um dos agrupamentos. Um luxo !

Jogariam em Sarriá, ex-estádio do Espanhol de Barcelona (hoje demolido). Na primeira jornada Itália-Argentina, depois o derby sul-americano e por fim a reedição da final de 70.

Logo no primeiro jogo, a Squadra Azurra orientada por Enzo Bearzot, mostrou que as dificuldades da primeira fase não passavam de um equívoco. Com uma extrema eficácia na arte de contra-atacar, derrotou os campeões do mundo por 2-1.

Na segunda ronda tivemos oportunidade de desfrutar de mais um festival Brasil. Vencendo categoricamente a Argentina por 3-1 (podiam ter sido muitos mais), o Escrete realizou talvez a melhor de todas as suas exibições na prova. Maradona foi expulso por agressão a Batista, e a Argentina dizia adeus à competição e à revalidação do título. Ao Brasil bastaria o empate frente à Itália para seguir rumo às meias finais, onde tinha a Polónia à sua espera.

Chegou-se assim ao decisivo jogo, de um grupo onde, mau grado os nomes em presença, o Brasil, pelo que mostrara até aí, era claramente favorito.

Numa tarde de sol e calor, a equipa de Tele Santana actuou com o seu onze base: Valdir Peres, Leandro, Oscar, Luisinho, Júnior, Cerezzo, Falcão, Sócrates, Zico, Serginho e Eder.

Com um meio campo deslumbrante, o Brasil espalhava magia pelos relvados. Mas o seu guarda-redes, a sua estratégia defensiva e o seu ponta de lança (Serginho), ficavam um tanto aquém da qualidade geral da equipa. Os italianos, matreiros, saberiam explorar isso muito bem.

Enzo Bearzot fez alinhar : Zoff, Gentile, Scirea, Colovatti, Cabrini, Oriali, Tardelli, Antognioni, Conti, Rossi e Grazziani.

Apesar de não ter marcado qualquer golo na primeira fase, Paolo Rossi, depois de dois anos a cumprir castigo por corrupção e viciação de resultados (no célebre caso “Totonero” que levou o Milan para série B), era ainda a grande figura da equipa. Mas Bruno Conti, em início de carreira, estava a revelar também o seu enorme talento. A força defensiva da equipa era notável .Zoff ainda era o melhor do mundo na altura , e Gentile vinha de uma marcação impiedosa sobre Maradona, que o secou por completo.

Logo aos seis minutos de jogo, Rossi recebe um cruzamento ao segundo poste e cabeceia para o fundo da baliza de Valdir Peres. A Itália praticamente entrava a ganhar, causando sensação.

Ainda havia muito jogo pela frente, e isso tratou de demonstrar Sócrates, cinco minutos depois, após um passe perfeito de Zico, restabelecendo um empate que todos aguardavam com naturalidade.

A meio da primeira parte, Paolo Rossi aproveita um passe errado de Leandro, isola-se e dispara à entrada da área para o fundo da baliza de um ineficaz Valdir Peres. A Itália voltava a surpreender, e colocava-se de novo na frente do marcador, resultado com que se atingiria o intervalo.

Na segunda parte viu-se a um verdadeiro massacre brasileiro em busca do golo da igualdade que, recorde-se, apurava o “Escrete”. A Itália contra-atacava com perigo. Assistia-se a um espectáculo de sonho, com qualidade técnica e intensidade competitiva levada aos limites do absurdo.

A pouco mais de um quarto de hora do fim, Falcão recebe a bola na intermediária transalpina, simula que vai flanquear, aproveita a desmarcação inteligente de um colega para ganhar espaço, e faz um potente remate cruzado que bate pela segunda vez o veteraníssimo Dino Zoff. Era o delírio nas bancadas pintadas de verde e amarelo. A imagem de Falcão a correr de braços abertos em direcção ao banco ainda permanece na memória de muitos de nós como um dos mais belos e marcantes momentos desse mundial. O mais difícil parecia feito.

Mas o dia era mesmo de Paolo Rossi. Ainda se festejava o golo de Falcão e há um canto contra o Brasil. A bola vai para a área, é devolvida pela defesa sul-americana, mas a segunda vaga apanha Rossi (posto em jogo por Júnior) que, completamente sozinho diante de Valdir Peres, não tem dificuldade em desviar a bola para dentro da baliza brasileira, perante o espanto generalizado.

A Itália, a dez minutos do fim do jogo, colocava-se numa inesperada posição de apuramento. O Brasil, o mágico Brasil, o assombroso Brasil, começava a ver bem perto de si a porta de saída do Mundial.

Os últimos momentos foram dramáticos. Zoff defendia tudo. Defendeu inclusivamente sobre a linha uma bola que fez gritar golo em todo o estádio. Em todo o mundo.

A Itália queimava tempo. Parecia sempre saber muito bem como o fazer. O árbitro apitou. Ninguém acreditava no que se estava a passar. Trinta e dois anos depois do “Maracanazzo”, a nação brasileira voltava a chorar uma dolorosa e cruel derrota da sua selecção. Em Portugal o sentimento era quase idêntico. Estava afastada uma das melhores selecções de todos os tempos.

A Itália, sabe-se, embalou para o título, com Rossi a marcar em todos os jogos até à final.

O Brasil de Telé Santana teria nova oportunidade no México 86. Mas, noutro sublime jogo, seria novamente eliminado, novamente de forma cruel, por penáltis, diante da França de Platini.

Daí em diante o futebol não mais foi o mesmo. A arte deu lugar ao rigor, a criatividade perdeu para a força. Em Sarriá nessa tarde, morreu um conceito de futebol.

Um jogo que ficou para a história como um dos mais belos de sempre.

Inesquecível !

6 comentários:

N.M disse...

Este foi sem duvida o melhor Brasil de todos os tempos, não ganharam nada mas jogavam muito á bola!Apenas os vi jogar em vídeo, pois nasci em 1982 mas jogadores como Sócrates, Zico e Falcão eram sem duvida muito bons!!!

jsbmj@clix.pt disse...

LF excelente artigo, de um dia imemorial e... inesquecível... Que Brasil aquele... Eu sou da tua geração, fiquei 'marcado' também...

Anónimo disse...

Este jogo foi tão mágico, tão vibrante e inesquecível, que até deu origem a uma das melhores peças de teatro que já vi, e que se chama precisamente "Itália - Brasil 3-2", escrita por David Enia. Nesse dia, o cinema Quarteto em Lisboa, prevendo a ausência de espectadores, até instalou no átrio dez televisões a cores para as pessoas poderem ver o jogo. Esse Brasil é também a minha equipa preferida de sempre. E sinceramente, até acho que facto de não ter sido campeã do mundo torna essa equipa ainda mais mítica. Tal como a Hungria de Puskas dos anos 50 e a Holanda "Laranja Mecânica" dos anos 70. Obrigado pelo teu post.

Anónimo disse...

Este é sem dúvida um dos melhores jogos de sempre dos Mundiais. O Brasil acusou um certo favoritismo que redundou em fracasso...porque este Brasil há semelhança do de 70...era óptimo com a bola e muito fraco sem ela...em termos tacticos foi o erro do Tele Santana, apostar demasiado num meio campo criativo e não segurar a impulsividade natural de jogadores tão magníficos...ao contrário de muitas seleções brasileiras que nao ganharam o Mundial, esta foi a única que foi aplaudida pelo povo brasileiro e inclusive no aeroporto de madrid quando regressou a casa...caiu de pe...ja vi o jogo todo e até mesmo com com o resultado em 2-2, o Brasil continuou a atacar...ate parecia que era vergonha ceder um empate...esta mentalidade perdeu-se nesse dia...mas a itália fez um jogo belíssimo e mereceu na generalidade a vitoria porque soube aproveitar os erros infantis do brasil e controlou o jogo...

Anónimo disse...

Tinha 12 anos de idade, apaixonadíssimo por futebol, respirei esta copa e a belíssima seleção como um garoto apaixonado. Este foi um jogão de bola embora tenha chorado demasiadamente após a partida. A melhor seleção que vi jogar em minha vida - sem sombra de dúvida... realmente INESQUECÍVEL!!!

Anónimo disse...

Sou um brasileiro marcado pela geração de 1982. A derrota de 1982 levou ao fim do futebol arte. Saudades do tempo em que Telê colocava em campo um time que antes tinha que jogar bonito para como consequencia vencer.
Chorei muito ao final do jogo. Tanto que a minha mãe italiana não conseguiu comemorar a vitória de sua Squadra Azzura.
Nunca mais vi uma seleção igual. Nem em 1994 e tampouco em 2002.