ATRÁS DE UMA BOLA

Em alturas de grandes competições futebolísticas internacionais, o panorama mediático é no nosso país, ainda mais do que o normal, inundado de futebol. Em reacção a essa presença massiva e hegemónica, sempre se levantam vozes discordantes, procurando teorizar acerca daquilo que representa o fenómeno futebolístico, sua força, seu mediatismo, sua representatividade, afirmando, de forma mais ou menos ostentiva, que ele não constitui mais que uma zelada forma de alienação. Foi assim antes, durante e depois do Euro 2004, aquando do Mundial da Alemanha, e agora, em vésperas de se iniciar o Euro 2008, a história repete-se. Sou e sempre fui, desde que me conheço, um fervoroso, incondicional, radical e apaixonado adepto do futebol. Ainda não sabia ler já via jogos, olhava embevecidamente para as fotografias que saiam nos jornais desportivos, para os cromos que já coleccionava, e algumas das primeiras palavras que soube pronunciar foram seguramente “Bola” e “Benfica” – o meu clube ! Eu não escolhi o futebol, foi ele que, de forma avassaladora, me escolheu a mim, muito por influência do meu pai, mas também pelo fascínio das suas cores, das suas movimentações, de toda uma estética incomparável e única, de uma emoção sempre renovada e intensa, de uma incerteza excitante e dramática. Antes de gostar de música, de cinema, de teatro ou literatura, foi de futebol que eu gostei. É algo que faz parte de mim desde as mais remotas profundezas do meu ser. Aprendi as cores pelos clubes, aprendi os números pelas costas dos jogadores, aprendi geografia pelas cidades e países que conhecia do futebol, e até aprendi francês a tentar arduamente ler a revista “Onze”, de qualidade gráfica então pouco vista em Portugal, e que desde os sete anos de idade o meu pai me comprava mensalmente. Hoje gosto de Maradona como gosto de Wagner, admiro Pelé como admiro Munch, delicio-me com uma jogada de Ronaldo como com um momento literário de Saramago. Não são realidades antagónicas, são antes complementares. Complementarmente ilustrativas da força da natureza humana em vertentes diferentes das suas inesgotáveis capacidades.
Mas, como poderia alguém assim libertar-se, mesmo que porventura o quisesse, de um fenómeno que, de tão densamente arreigado, quase transcende a sua própria identidade? Tratar-se-á efectivamente de uma alienação? Essa dúvida, que já me assaltou o espírito por várias ocasiões, tem-me levado a uma reflexão sobre de que se trata afinal este jogo e este espectáculo.
É importante dizer desde logo que independentemente de quaisquer juízos de valor que se possam fazer acerca do futebol, não restam dúvidas de que ele marcará indelevelmente a história universal como uma das manifestações lúdicas mais aglutinadoras desde que a humanidade é conhecida. Mas justificará essa popularidade uma tão grande e sufocante presença nos media? Nesta temática há que distinguir duas vertentes distintas. Se os seus críticos apenas pretendem demonstrar que o futebol é demasiado mediatizado por antagonismo com manifestações artísticas de outras naturezas, terei de dizer que não posso estar mais de acordo – de facto a boa música, o teatro, a pintura, e a literatura, são em absoluto descartadas por uma comunicação social ávida e exclusivamente empenhada em garantir receitas imediatas, esquivando-se sistematicamente ao seu mais importante papel, o de mola impulsionadora do crescimento cultural de um povo. Mas se por outro lado o objectivo for demonstrar que o fenómeno futebolístico envolve, procura ou proporciona uma alienação perniciosa para os cidadãos ou para um país, cuja ideia adjacente o aponta como um espectáculo menor, então não poderei de modo algum aceitar a crítica, mau grado saber que ele já vestiu também, ocasionalmente, esse fato – ocasiões que interpreto mais como fruto de uma instrumentalização alheia do que uma alienação própria, e que revelam a enorme força que lhe é e foi conferida por todos os poderes. A relevância dos jogos com bola ao longo da História é testemunhada por inúmeros factos. Recordo que Homero na sua “Odisseia” ou Shakespeare em “Rei Lear”, por exemplo, já faziam referências ao jogo da bola. Sabe-se que a alta nobreza urbana italiana se divertia com o calcio (uma espécie de pré-futebol) das ruas na idade média. Se mais fosse necessário, diria que o futebol existe há mais tempo que o cinema, e que começou a ser praticado e cresceu sem que existissem ainda aviões, televisores ou automóveis, não podendo obviamente nessa época ser entendido como alienante. Acusadas desse “crime” foram aliás, ao longo da história, variadas manifestações culturais que hoje são unanimemente aclamadas como eruditas.O futebol pode de facto constituir, e constitui, um escape para vidas sofridas e sem futuro. Mas, será essa sua vertente assim tão reprovável ? Droga ou alcool não são eles mesmos escapes cujo lugar pode ser deixado, em parte que seja, ao futebol ? Substituir-se-á ele às dificuldades, problemas e ambições das populações mais desfavorecidas, ou servirá tão somente para lhes devolver o prazer de sonhar, de festejar, de alcançar, mesmo que pela via da imaginação e da paixão, aquilo que a vida lhes nega quotidianamente?

O futebol é um poderoso berço de identidades. Não é a vida, mas pode muito bem fazer parte dela, eventualmente como uma espécie de suplemento vitamínico emocional. Este belo jogo é de facto um brinquedo de emoções, extremamente estimulante e salutar, excepto naturalmente quando essas emoções resultam em ódio ou violência. É uma arte – que diferença existe afinal entre um bailado e uma partida de futebol de alto nível ? – com um colorido e uma movimentação de contornos estéticos absolutamente inegáveis. Se procurarmos comparar o futebol com qualquer realização estética, chegaremos rapidamente à conclusão que por muito que esta eleve valores humanos diversos como o amor, a amizade, a inteligência, a rectidão, a honestidade, também o futebol contempla os que toma como seus, sejam eles a coragem, força, ambição, solidariedade, companheirismo, a honra ou outros. A beleza plástica da movimentação dos jogadores no relvado, a forma hábil como conduzem a bola, os cânticos nas bancadas, os festejos dos golos ou a densidade dramática dos rostos ouvindo os hinos, conferem o elemento estético necessário para que se possa afirmar que o futebol também tem, inquestionavelmente, uma forte componente artística. Também relevante é o elevadíssimo espírito democrático e colectivo que se verifica num campo de futebol. Não há maestros, não há protagonistas nem figurantes. São vinte e dois homens e uma bola, todos iguais perante ela, e onde só o talento, a coragem, o espírito de luta e capacidade de combate os divide. Num tempo em que o utilitarismo individualista dita todas as regras, esta componente não é nada despicienda para ilustrar a força positiva que emana de um jogo de futebol, e também, quiçá, explicar porque é que ele faz movimentar tanta gente em todo o globo. Mas os méritos do desporto rei não se esgotam nestas facetas. Há que lhe conferir também o dom de, sendo uma representação alegórica da guerra, satisfazer de forma inócua o instintivo traço guerreiro imanente à nossa espécie, não esquecendo que se trata, em muitos países, talvez do mais eficaz promotor de patriotismo dos tempos modernos, nos quais uma globalização impiedosa tudo revolve, tudo destrói, tudo nivela. Um dos argumentos que suportam os ataques de alguns intelectuais da nossa praça ao desporto rei prendem-se com o facto de outros países não lhe darem supostamente o mesmo destaque. Não é de todo verdade. Se olharmos à Espanha, à Itália e a muitos outros países da Europa como Grécia ou Turquia, o panorama não difere substancialmente do nosso (embora os seus telejornais não tenham hora e meia como cá). Na América Latina o entusiasmo em volta dos jogos ainda é maior e mais fanatizado, sobretudo se olharmos aos casos do Brasil (onde em 1950 dezenas de pessoas se suicidaram a seguir à derrota do Brasil na final do campeonato do mundo que organizou) e Argentina (sobretudo desde Maradona). Em África são decretados feriados nacionais pelas vitórias de algumas selecções, e mesmo na Ásia, em países como o Irão, Coreia ou Arábia Saudita, o fanatismo com que são encarados certos jogos e certas competições, sobretudo quando estão por detrás aspectos políticos, não pára de crescer. Em todos os países, mais ou menos fanatizados, mesmo nos Estados Unidos, a influencia do futebol continua em acelerado processo ascendente. Além de tudo o resto, o futebol é também hoje uma poderosa industria, com interessantes aspectos de análise de domínio económico-financeiro. Por tudo isto – mesmo que com respeito por quem, ainda assim, o consegue ignorar -, permitam-me que, com toda a paixão, e com muita gratidão, solte um sonoro ”Viva o futebol !”, e termine com as quadras com que homenageio esta minha tão grande paixão:

BEM NO FUNDO DE MIM

Aos teus pés rendido nasci,
sem escolha, nem dó ou piedade.
Pela rádio o mundo eu ouvi.
Sonhava acordado, na verdade.

As cores, os sons, a magia,
de um estádio cheio e vibrante,
em busca de momentos de euforia,
na graça de um jogo cintilante.

És escola, amigo, paraíso,
também dor, ansiedade e desalento.
És tudo, até que chega o aviso,
que a vida é bem mais do que um momento.

Ensinaste-me a crescer, também a amar
as cores dum clube, a bandeira de um país.
Sempre que te vejo na relva dançar,
Os olhos me saltam, assim sou feliz.

Mais do que um desporto, mais do que um jogo.
Mais do que um poema, mais do que o sol.
És furiosa paixão à prova de fogo,
Meu querido, doce e amado futebol
.

LF 2006

NOTA: Este texto havia sido publicado antes do Mundial 2006, e foi agora adaptado à ocasião. Os versos são da mesma altura.

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